Entrevista com um "Alemão".

Vicente Clemente

29/08/13 - 21:10

Início deste mês de fevereiro/2009 estivemos na residência do Sr. Octávio Kirchmair, um dos descendentes de alemães mais idosos de nossa comunidade da Borboleta e lá, fomos recebidos gentilmente por ele e sua esposa Cirene e num gostoso bate-papo pra lá de prazeroso, para ambas as partes, diga-se de passagem, soubemos de sua trajetória de vida, repleta de nuances e emoções, que passamos a relatar na entrevista que nos concedeu:


- Primeiramente, olha aí como escreveu meu nome, tem o C, é OCTÁVIO;


Eu nasci no dia 21 de novembro de 1915 (por sinal é o mesmo dia e mês do nascimento deste entrevistador), lá em São Pedro, nas proximidades da Igreja de São Pedro, onde morava meu pai HENRIQUE KIRCHMAIR e minha mãe JÚLIA DOROTHÉA KIRCHMAIR – o sobrenome de solteira dela é LEMPKE.


Qual era o trabalho de seu pai e da família?


- Papai era açougueiro, isto é, tinha um matadouro no quintal da casa. Comprava os animais (bois, bezerros e porcos) de comerciantes, que os traziam de muito longe, sacrificava os animais e os esquartejava, vendendo as peças de carne com os ossos. Também fabricava embutidos, lingüiças e chouriços, que eram vendidos pela vizinhança e na cidade.


Como era composta sua família, quantos irmãos?


- Era a Isaura (que se casou com: 1-Guilherme Menini, 2- Alfredo Hagen, 3- Carlos Mitterhofer, a Otília (que se casou com João Reink), a Antonieta (que se casou com Joaquim Vargas), eu Octávio, Pedro (que se casou com Helena Stephan), Clodoveu (que se casou com Carolina Mitterhofer), Waldemar (que se casou com Maria da Glória Mitterhofer) e o João (Buré – que se casou com Júlia Stephan), éramos oito irmãos e todos ajudavam nas tarefas do matadouro. Os meninos mais velhos ajudavam o pai na matança e cortes maiores, as meninas, nos cortes menores e no enchimento das lingüiças e chouriços.


Um fato que não me sai da memória é o quadro de minha mãe, sentada num banquinho, na cozinha, descascando alho, à luz do lampião e lamparinas. Todos iam dormir e ela continuava no seu trabalho até encher uma grande tigela. Pela manhã, tudo limpinho. As cascas num latão e os brancos alhos se derramando pelas beiradas da tigela.


Nessa parte do relato, era evidente a emoção e o olhar no horizonte, engolindo em seco.


Era parte do tempero para a lingüiça e chouriço, arrematou ele.


E sua infância, como era?


- Desde muito pequeno ajudava na roça, cuidando de canteiros de hortaliças, batatas... e na plantação de milho. Ainda buscava bezerros no pasto e como toda criança levada, “aprontava” junto com meus irmãos.


Comecei a estudar, numa sala, no Adro da Igreja de São Pedro, onde juntamente com outros meninos de 07/08 anos, recebia educação básica (ler e escrever) tarefa esta a cargo de Dona Zabilinha e Dona Walquiria.


Mas isso, infelizmente durou pouco tempo, pois os pais dos meninos precisavam deles para ajudar no serviço e iam até lá na “Escola” e tiravam eles para buscar bois e bezerros nos pastos. Com isso, menos de um ano foi o tempo de escola que freqüentei na vida.


Além disso, com nove anos de idade já ganhava algum dinheirinho no serviço de ‘armador de paus”, no jogo de bola. Era uma pista de tábuas lizinhas, por onde os jogadores lançavam pesadas bolas de madeira, de encontro aos paus, localizados na outra extremidade, derrubando-os, uns ou todos.


Meu trabalho era alinhar os paus, depois de derrubados e encaminhar as bolas, por um cocho lateral, que em declive devolvia as bolas para os jogadores.


Fiz isso por um longo tempo, no jogo do Sebastião Peters, no Antonio Dias, do Germano Stiegert... todos na região de São Pedro. - Seria esse jogo um ancestral do boliche -.


Conte-nos mais sobre suas atividades e serviços:


- Já rapazinho, acompanhava a comitiva para ir comprar e trazer boiada, de Bias Fortes, Taboleiro, Humaitá e Torreões, para o matadouro da família e o da cidade e firmei sociedade com o boiadeiro Zé Dias. Eram dias e dias no lombo de um cavalo, debaixo de sol ardente ou chuvas torrenciais, quando grossas capas protegiam do pescoço até os pés, tangendo os animais por morros, baixadas e ruas dos bairros e cidades por onde passava a boiada.


Nessa época nossa família já havia se mudado para a Borboleta, numa “fazendinha” lá no canto, onde atualmente é a Rua Desembargador Eurico Cunha, número 321 (?) onde também continuava a matança de animais (matadouro);


Trabalhei também como carroceiro, buscando porcos no matadouro municipal, para o Açougue Glória – Jacob Sthefan e mais tarde no açougue do Pedro Daibert, onde fabricava mortadela.


Como foi seu namoro e casamento?


- Desde pequeno, já conhecia a Rosinha. Namorei algumas outras meninas, mas, como dizia o Juca Mitterhofer, estava destinado àquela descendente de italianos, filha do vendeiro Júlio Menini. Não deu outra, com 21 anos de idade, estava casando com ela, na Igreja da Glória, em dezembro de 1936.


Primeiramente moramos na casa de papai, na atual Rua Dês. Eurico Cunha, na Borboleta, depois no Creosotagem, perto da Fazenda do Vilaça (atual bairro Francisco Bernardino) (=ou – 2 anos). Posteriormente um tempo na casa alugada do João Peters, na Borboleta e depois na casa de meus sogros, Júlio Menini e Josefina Casali Menini, na entrada da Borboleta, onde havia a venda e a casa de morada. Nesse tempo ajudava meu sogro na venda, finalmente na casa da Rua Braz Xavier Bastos Jr, casa própria.


Nesse tempo, foram nascendo os filhos, fruto de nosso amor: Milton, Edson, Devanir (Vaninho-falecido), Edmar, Danilo Vicente e por fim a “rapa do tacho”, a preciosa Roseli.


Rosinha, que faleceu a 10/01/1978, era uma das quatro irmãs, que completava com a Elvira (casou-se com Pepê – Pedro Klaechim), Olívia (Guigui, casou-se com o Carlinho Vilaça) e Noemia (casou-se com o sgt. Paulo Audebert);


Depois de 42 anos de casamento e viúvo, como ficou sua vida?


- No princípio foi muito difícil e me senti muito sozinho, mas, tive muito apoio dos filhos, noras e genro, e em 26/05/1980 já estava casado com minha atual esposa, também viúva, Cirene Gomes Madalena, que até hoje “me atura”, no bom sentido, claro.


Sr. Octávio: que outras atividades, ou serviços, se dedicou?


- Depois de armador de pinos, do matadouro, da compra e venda de gado, de carroceiro, de fabricante de mortadela, de auxiliar de vendeiro e com a família para criar e encaminhar na vida, comprei um caminhão Studebaker bem usado, para puxar lenha do mato. Cortava e vendia para as “vendas”, armazéns. Na época da guerra, tais estabelecimentos comerciais vendiam lenha em feixes e também em metro. Também “cozinhava” os paus, transformando-os em carvão, que vendia em sacos para as ‘vendas”.


Depois comprei um caminhão Mercedes Benz, tanque, já com idéia de transportar combustíveis do Rio de Janeiro para Juiz de Fora. Acontece que o tanque, testado com água, não vazava nada. Era só enche-lo de gasolina que vazava. Foi muito difícil recupera-lo para o trabalho.


Então, fui comprando um a um diversos caminhões tanques: Mercedes 312, Mercedonas, Reo, tudo para transportar gasolina, óleo e querosene, da Refinaria do Rio de Janeiro para os depósitos em Juiz de Fora. O depósito da Texaco era no Mariano Procópio, o da Shell era perto do atual Mergulhão, na Av. Rio Branco e o da Atlantic era no Cerâmica.


Uma vez nos depósitos, em caminhões menores, transportava os combustíveis para os postos de Entre Rios de Minas, Lafayete, Barbacena, Ubá, Belo Horizonte.


Era uma grande luta e a empresa que fundei, TRANSPORTE BORBOLETA era uma das mais conceituadas de Minas Gerais.


A família toda ajudava, os filhos homens e meu irmão Waldemar.


Um dia, tudo acaba e com a construção de oleodutos, acabou também nossa empresa. Vendi os caminhões e adquiri um posto de combustíveis, com o Waldemar e meu filho Milton, na Av. Getulio Vargas, perto da Caixa Econômica, o POSTO PRESIDENTE. Isso durou mais ou menos três anos, quando desistimos e revendemos o posto para seus antigos donos.


Então, quer dizer que de uma família de açougueiros, (todos seus irmãos se dedicaram ao matadouro e açougue), seus filhos se tornaram uma família de motoristas?


- É, Meu pai, eu e meus irmãos éramos dedicados ao abate e comércio de carnes – açougueiros – e me tornando caminhoneiro, levei meus filhos a se dedicar à empresa de transporte de combustíveis, dirigindo os caminhões tanques e todos eram motoristas.


E após sua aventura no ramo de posto de combustíveis, o que aconteceu?


- Montei um bar, nos terrenos que havia comprado, na atual Rua Braz Xavier Bastos Jr., na Borboleta, de sociedade com meu irmão Clodoveu, que por muitos anos funcionou e era famoso na região, com o comércio na parte da frente, jogo de sinuca no salão do meio e carteado no salão dos fundos. Era conhecido como BAR DO VEVÊU.


Ainda montei, ao lado do bar, um jogo de bolas, como aqueles em que trabalhei quando menino, como armador de paus. Era muito freqüentado, com torcidas gritando nas laterais, enquanto as grandes bolas rolavam pelo assoalho de tábuas e outros meninos faziam a vez de armadores.


Foi uma época muito boa e que até hoje é lembrada pela comunidade do bairro Borboleta.


Em 01/04/1978 fui aposentado por invalidez, causado por fortes dores na coluna, fruto do desgaste das atividades insalubres de motorista de caminhão.


Sr. Octávio, de todas as atividades, serviços que executou, qual teria sido o pior?


- Posso dizer, com certeza, foi quando queimava (cozinhava) lenha para o carvão. Era um sofrimento, juntar a lenha em altos feixes, como uma “oca de índio”, de até 04 metros de altura, cobrir com matos, folhagens e terra e atear fogo, que cozinhava a lenha transformando em carvão. Era muita sujeira e calor e me deixava muito cansado.


Veja como é a vida. O senhor quase não estudou (menos de um ano) e fez tudo isso na sua vida. Explica como conseguiu?


- Na escola de Dª Zabilinha, no São Pedro, aprendi alguma coisa de números e letras, mas “a dificuldade faz o sapo pular”. Quando era ,para repartir o gado comprado, fazia uma risca no chão e escolhia tantas cabeças de cada lado e cada um ficava com um lote. Depois, a própria vida e o serviço me ensinou a me virar.


Finalmente, o senhor com quase 94 anos, como está de saúde?


- Olha, até uns quatro anos atrás, nunca havia sido internado em um hospital. Somente alguma consulta médica e quase ou nenhum remédio. Agora, infelizmente, “a máquina já está desgastada” e tenho sido internado quase que de três em três meses, para tratamento e a vista já foi operada, mas já está boa.


Só tenho a agradecer a Deus pela saúde que me concedeu durante tanto tempo e as oportunidades de serviço para criar minha família e à minha família (as duas) por compartilhar comigo das adversidades e das alegrias da vida.


Afinal, o senhor é alemão ou não?


- Não, nem meu pai. Meu avô paterno é que veio da Alemanha – da região de Weer, no Tirol, em 1858, no navio-veleiro GUNDELA e veio com sua família, pai, e mais cinco irmãos, contratados pelo Império Brasileiro e veio para a Colônia D. Pedro II no Bairro São Pedro.


Sr. Octávio, com “C”, poderia nos deixar uma mensagem?


- Os nossos antepassados alemães, traziam com eles esta frase: “ORA, TRABALHA E DEUS AJUDA”.


Portanto posso dizer, que não se deve desistir, sempre seguir em frente. Se um negócio não der certo, tente outro e outro. Trabalhe duro e se dedique aos seus objetivos, com fé e coragem.



Um testemunho final:


Desde pequeno, eu e outros meninos do bairro, carregávamos almoço, isto é, buscávamos as marmitas na casa dos trabalhadores e entregávamos nas indústrias e obras, na cidade. Então, cada menino levava consigo de três a cinco marmitas em embornais (sacolas) de pano, aos ombros.


No retorno da cidade, pelos caminhos, quando ouvíamos o ronco do motor do caminhão, subindo o morro, já sabíamos que era o caminhão do Sr. Octávio. Ficávamos à beira do caminho, pedindo-lhe carona. Ele, “muito moleque” passava por nós e freava o caminhão mais à frente. Saíamos em desabalada carreira, sacolas batendo no corpo, para subir na carroceria do caminhão. Quando chegávamos bem perto, ele, acelerava e parava mais na frente. Corríamos mais ainda até que ele nos deixava subir e nos levava até o centro do bairro Borboleta. Era sempre assim e gargalhava vendo-nos correr, mas, sempre nos dava carona.


Certa feita, fez pior. A molecada já se juntara para descerem juntos para a cidade, levar almoço. O caminhão estava parado na porta da casa dele. Ele entrou, ligou o motor e mandou a turma subir. Movimentou o caminhão, deu uma volta no quarteirão e parou de novo em frente sua casa, saiu do caminhão e disse que não iria descer naquele momento não. Todos desceram furibundos do caminhão e enfrentaram o trajeto até a cidade na sola do pé. Todos andavam descalços.


Havia uma empatia entre o Sr. Octávio e os meninos, que sempre brincavam uns com os outros. Era “um gozador”!



Vicente de Paulo Clemente (bisneto do imigrante alemão Phillip Clemens)

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