Memorialistas Alemães
Dentro deste aspecto, trazemos a este Seminário um apanhado das informações de alguns memorialistas alemães que documentaram sobre a História irnigratória, em especial do Rio Grande do Sul.
Revolução de 1893. Por ocasião do centenário daquela sangrenta Revolução, localizamos vários depoimentos. Traduzimos os do médico prático licenciado João Eickl1off2, do médico Teodor Firmbach3 e da então menina Teresia Hennrich4 - todos participes daquela cruenta guerra de irmãos contra irmãos.
João Eickhoff possuía quatro lotes coloniais em Taquara, onde trabalhou como médico e marceneiro. Maçou, simpatiza.'1te de Silveira Martins, teve de refugiar-se quando eclodiu a Revolução e sobre ele pairava ameaça de degola, emanada do prefeito de Taquara. Incorporado aos maragatos que tentavam impedir a remessa de armas dos Iegalistas ao comandante Salvador Pinheiro Cabral, estacionado na Serra, serviu como médico a um piquete de alunos da Escola Militar. O malogro da missão obrigou a uma retirada estratégica, desabalada, Serra abaixo. Em caminho, assistiu ao levante de S. Maria do Mundo Novo e às falcatruas eleitorais locais. Envolveu-se em comércio ilícito de gado procedente da Serra, sendo levado à prisão de Porto Alegre e ameaçado de morte. Todos esses lances emprestam um tom aventuresco à narrativa de Eickhoff Foi liberto com a condição de não retomar a Três Coroas (Taquara). Aí a mulher, por anos responsável pela criação dos filhos, tomou-se "muito nervosa", tocando-lhe vender terras e benfeitorias do casal por preço irrisório. O mesmo teve de fazer o irmão Luiz Eickhoff, radicado com cartório e serraria em Sapiranga Mudaram-se ambos para Barracão (Ijuí), onde Luiz adquiriu 100 hectares de terras e João se dedicou ao atendimento médico da população. Bem quisto, a comunidade lhe erigiu monumento de reconhecimento após seu falecimento, em 1936.
Teodor Fírmbach, médico formado, estava radicado em Estrela quando estourou a Revolução Federalista. Sua narrativa reporta aos conflitos entre as duas correntes políticas: governistas e f'ederalistas. Havia na região do vale do rio Taquari um terceiro grupo, os "serranos", gente desalojada das terras devo lutas que ocupavam, por conta de loteamento para imigração, na década de 1870. Aproveitando da Revolução para recuperar prejuízos, piquetes de serranos percorriam as Picadas interioranas à procura de animais, víveres, objetos para saquear e de homens para incorporar às suas fileiras. Santa Clara (do Sul), à época distrito de Lajeado, foi das Picadas que por mais tempo ficou à margem das incursões de vandalismo. Mas em 1895 recebeu ameaça de invasão e exterminio. lncontinenti, a comunidade se mobilizou: treinamento militar sob a chefia do líder José Diehl, aquisição de armas modernas na Capital, orações na igreja, guarda contínua na entrada e na saída da Picada ... Em 28.5.1895 os invasores surgiram de madrugada e a comlli'1Ídade resistiu heroicamente ante o grupo numericamente muito maior. De tudo Firmbach fez registro, requisitado que foi pelo intendente de Lajeado para acorrer aos feridos de Santa Clara. Sua narrativa realça o espírito de união e o heroismo dos santa-clarenses.
Teresia Hennrich foi menina de doze anos quando assistiu o assalto de serranos à casa comercial de seus pais, em WaUachei atual município de S. Maria do Herval, RS. As memórias escritas 60 anos mais tarde, ressaltam o dia-a-dia da pacata comunidade rural e a maneira que esta encontrou para burlar as limitações impostas pela guerra civil; os colonos abriram estrada secundária dando acesso a suas roças, donde retomavam em grupo, à tardinha, entoando canções alemãs. Teresia registra fatos como o roubo de cavalos (o meio de transporte por excelência na época); saques de maragatos a vendas e açougues, o assassinato de um andarilho recém imigrado, que se oferecia para ser professor da comunidade. Aponta o preto Malaquias como o maior degolador das hordas de serranos invasores, acabando assasinado pelos moradores de Dois Irmãos. Wallachei dispunha de inspetores de quarteirão, montando guarda de 24 horas na entrada e saída da Picada. A comunidade recebeu reforço de policiamento por parte do governo, fato raro durante a Revolução F ederalista.
Madame von Langendoncli.. A maioria absoluta dos imigrantes foi movida por dificuldades econômicas, em busca de nova pátria Houve os soldados mercenários contratados em 1824, por D. Pedro I, e os Brummer de que à frente se aliou, soldados mercenários para as guerras do Prata, 1851. Um número Ínfimo veio movido por espírito de aventura, pelo desejo de terras ou, no caso da belga Marie Barbe Antoinette Rutgeers von Langendonck5, por amor à natureza, à liberdade, ao desejo de poder conviver com a selva, já então inexistente na Europa Langendonck em 1857 imigrou ju..'lto com 150 imigrantes "livres", isto é, que haviam pago sua viagem, alguns munidos de diih~eiro e de mercadorias, o que lhes valeu de não passarem fome no navio que levou dois meses e dez dias até o Rio Grande do Sul
Em suas memórias essa imigrante abonada e com desejo de conhecer a selva, desgostou da areia que tomou a cidade portuária de Rio Grande, ao contrário da "cidade bonita" de Porto Alegre, com suas edificações novas. Aí recebeu recomendação de não se embrenhar na mata, pelas dificuldades não habituadas que a aguarda.'Íarn.
Mas Léon, um dos filhos que veio com ela, se adiantou e viajou para a Colônia de Montravel, para erguer choupana no meio da floresta, para aguardar a chegada de mãe e do irmão.
Montraval era a Colônia de Nossa Senhora da Soledade que o Conde francês Montravel fonnava junto ao anoio Fenomeco, no atual município de Soledade, RS. Formada por "elemento humano demasiadamente heterogêneo e nem sempre da melhor qualidade alemães, holandeses, franceses suíços", somado à pouca experiência de colonização do Conde, a iniciativa teve apenas uma experiência efêmera - ocaso que no entanto Madame Langendock não viu pois retirou-se antes.
De Porto Alegre, a nova imigrante viajou de navio até o "porto do major Guimarães", onde a chuva a reteve por dez dias. Seguiu a cavalo até Harmonia, onde, no escritório da Colônia de Montravel, tomaram a lhe aconselhar que não seguisse, pelas dificuldades que a aguardavam. Porém, mais urna vez venceu o impulso aventureiro, o desejo de conhecer os encantos e os segredos da floresta.
Em HannonÍa parou em casa de um rico fazendeiro, cuja mulher estudara no Rio de Janeiro; era culta, falando o francês corretamente. O casal tratava com humanidade seus escravos. Uma delas, Flora, muito fha, era a predileta porque sabia lavar, passar, cozinhar, costurar vestidos e até fazer crivo em golas de camisa.
Arranchada na selva, Langendonck descreve a gente mal encarada, saída da prisão, que os agentes de emigração enviaram ao pedido do Conde MontraveL Era a escória social, sem condições de povoar a colônia e com os quais ela não poderia conviver.
Descreve então as excelentes condições da natureza, as terras férteis junto ao rio, onde bem poderia o governo belga estabelecer urna Colônia com seus cidadãos.
Entrementes, madarne von Langendonck travou relações com uma família de indígenas aculturados, os Nunes, vizinhos que moravam a uma légua de distâ.ncia Com eles aprendeu noções de agricultura rudimentar, corno a "derrubada da mata, a coivara e a lavoura de rotação de terras". Máxima Nunes era prestativa e lhe fazia urna série de favores e serviços domésticos; entendia como ninguém de amuletos, de simpatia para cura de hérnias e outros males, e de ervas medicinais,- único recurso médico disponível. Com essa família assistiu à fogueira de S. João e à simpatia do ovo em copo de água que, só nessa data, era capaz de ler com precisão as venturas e desventuras do futuro.
Langendonck fala de suas experiências desagradáveis face a animais selvagens corno aranhas, cobras ou tigres, ou os macacos ruços que lhe roubaram a colheita de milho; registra também as pragas de mosquitos e percevejos e o terrível bicho de pé, que fazia inchar a perna até o joelho e podia levar à perda do dedo infeccionado.
Após dois anos de permanência na selva, em que menos cuidou "do plantar" do que do "tudo observar", Langendonk vê os filhos abandonares a íloresta. Retoma a Porto Alegre, onde entra em contato com gente irn1uente, e encaminha seus dois filhos para o aprendizado do oficio de agrimensores, que um deles exerceu.
Viaja para o Rio de Janeiro munida de carta de recomendação do cônsul francês de Porto Alegre para o cônsul Theodoro Taunay, que lhe consegue audiência com o Imperador Pedro II, com quem se corresponde após retomar à Bélgica, em 1860.
Em 1863 está de volta ao Rio de Janeiro. Em 1865, em Porto Alegre, oferece a D. Pedro, quando em caminho para a rendição de Uruguaiana, os serviços do filho para a Guerra do Paraguai. Sua correspondência posterior a essa data é datada de São Leopoldo, até 1869, e depois, da Serra dos Tapes (1872-1874), onde faleceu em 1875, septuagenária. Na última carta dá conta da intenção de publicar um segundo livro de memórias, o que não chegou a efetuar.
O cristaleiro-colono. Josef Umann, com mulher e uma filhinha, aos 27 anos abandonou a zona de lapidação da boêmia, onde sofreu acidente quase fatal, em busca de "melhores condições de vida". É porta-voz da maioria absoluta dos imigrantes, que abandonaram a pátria por razões econômicas.
Em suas memórias6 narra sobre a insalubre profissão de lapidadof de cristal, que matava aos 35 anos pelo bacilo de Koch ou pela ingerência de pó de vidro nas aca.nJladas casebres da indústria vítrea.
Descreve a viagem imigratória: comida farta no transatlântico, aperto no navio costeiro, frio intenso na Lagoa dos Patos até Porto Alegre. A viagem continuou de barco pelo rio J acuí. De Rio Pardo
seguiram de carroça até S. Cruz, onde o cunhado o levou a cavalo até Venâncio Aires, tendo de penetrar na selva carregando penosamente seus baús às costas.
No Brasil estranhou inicialmente, como ademais todos os imigrantes, a inclemência da selva para o desbravador, que lhe desconhecia os segredos.
Traça um paralelo entre o proletário europeu, de longa jornada de trabalho, mísero salário e sem perspectivas de futuro, e os imigrantes que na nova pátria passaram inauditas dificuldades para vencer a mata escura com seus cipós entrelaçados e árvores gigantescas. A abertura da clareira para construção da choupana e para roçados enchia as mãos de bollias, só restando reprimir a dor e trabalhar, trabalhar, trabalhar ... Mas, apesar do cansaço, à noite Umann sentia-se "qual rei na Europa", repousando em tena própria, que nenhum usurário poderia requisitar. Reconstitui as dificuldades dos primeiros tempos, a solidariedade dos vizinhos, o aprendizado da seqüência agrícola semeadura-plantio-colheita, as melhorias no lote rural, o mutirão em trabalhos comunitários, como a escola para os filhos, a igreja, as estradas para colocação dos produtos que sobravam na lavoura ...
Autodidata de muita leitura, Umann trabalhou pelo desenvolvimento da nova pátria: foi colono, professor, vendeiro, incentivador de trabalhos comunitários, flmdou duas Sociedades de Cmlto e Leitura, cultuou a germanidade. Socialista em sua terra natal, sentia-se feliz com a comunidade democrática que se construía na selva, onde todos eram iguais na propriedade de 25 hectares de tena.
O adolescente burguês. A semelhança de Madame von Langendonck, João Weiss pertenceu ao pequeno grupo melhor aquinhoado economicamente, que emigrou movido por aventuras ou desejo de terra própria. Memorialista, deixou valiosa narrativa(7).
Imigrou em 1912, com os pais e um casal de irmãos. O pai, proprietário de duas lojas de calçados em Munique, detestava a profissão e sonhava em ser senhor de terras. A bagagem da família
suplantava em muito a dos demais imigrantes. No Rio e em Porto Alegre tiveram opção de permanecer, mas o chefe da família, avesso a trabalho assalariado, decidiu seguir para a colônia de Erechim, então em formação. João, 15 anos, descreve as desventuras que então começaram para sua família não habituada ao trabalho braçal, desconhecedora dos segredos da selva e dos amanhos da terra,
Num aberto às margens do rio Ligeirinho construíram sua choupana. Com a primeira chuvarada descobriram o porquê do "Lígeirinho", quando as águas em poucas horas transbordaram e inundaram a choupana, inutilizando farinha, açúcar e gêneros trazidos para saciar meio ano de fome na floresta A água encharcou também fatiotas e as cobertas fofinhas de penas de ganso; fogão e máquina de costura enferrujaram ...
Desanimar? De nada adiantaria. Só restou abrir clareira na mata densa e erguer outra choupana para não dormir ao relento, e deitar à terra as primeiras sementes. A safra demorou a chegar, sobreveio a fome. Fatiotas, vestidos de festa, porcelanas finas e relógios com corrente de ouro foram permutados por gêneros no armazém distante um dia de caminhada pelo pique do mato ...
João Weiss ajudou a família a se instalar penosamente na selva. Após cinco anos, haviam foIjado condições de sobrevivência, embora sem perspectivas de progresso econômico, por falta de meios de transporte para colocar excedentes agrícolas. Foi quando decidiu cumprir sua proposta inicial, de não permanecer na selva.
Migrou a pé. Em Marcelino Ramos, RS, trabalhou como auxiliar de marceneiro; adquiriu calçado e repôs suas roupas, todas rotas. Áli soube da morte da mãe, sucumbida aos inauditos trabalhos por que passou.
Depois, em 3tt classe, viajou de trem para Porto Alegre. Operário de uma fábrica na rua Nova (Voluntários da Pátria), sobreviveu à epidemia de febre espanhola de 1917; passou a empregado de uma casa comercial na rua da Praia Casou com moça lusa e não teve filhos. Com escolaridade de 2° grau trazida da Europa, no mato lia e relia os livros que escaparam da enchente. Depois, enquanto trabalhava corno operário, devorava tudo que lhe vinha às mãos,
grfuljeando cultura geral que o levou ao emprego de caixeiro viajante, profissão prestigiada socialmente. Viajou por 30 anos, conhecendo o Rio de Janeiro, Buenos Aires e Montevidéu.
Weiss é o memorialista que mais ressalta o duro papel feminino reservado às pioneiras da colonização, em confronto com a realidade vivida na Europa. Aponta uma viúva que viu trabalhar na pesada tarefa de abertura de estradas, trabalho que o governo remunerava, auferindo dessa maneira algum dinheiro para sustentar os filhinhos. Critica a falta de orientação do governo, no sentido de esclarecer sobre como enfrentar o início na selva, desconhecida e agreste.
Seu estágio de solidão na mata reforçou nele a tendência à nostalgia, tornando-o taciturno. Segundo informação oral, teria se suicidado já octogenário, em Horizontina, no Rio Grande do Sul.
Da leitura dos memorialistas podemos colher bons subsídios quanto às causas da emigração - carência econômica, recrutamento bélico, espírito de aventura; sabemos quanto aos obstáculos de percurso, o difícil início no lote rural da nova pátria e a gradativa melhora atingida com abnegação e persistência.
BIBLIOGRAFIA
*Hílda Agnes Hübner Flores: Mestre em História, professora da PUCRS aposentada; membro da Academia Literária Feminina RS. Pesquisa temática imigratória e de gênero. Quinze livros editados.
1 Cristóvão Lenz, Henrique Schäfer e Jorge Júlio Schnack. Memórias de Brumer (Introd., trad e notas de Hilda A. Hübner Flores). Porto Alegre: Est. 1997
2 EICKHOF, João. O Doutor Maragato(Introd., trad. e notas de Hilda A. Hübner Flores). Porto Alegre UFRGS, 1994. Original in Kalender für die Deutschen in Brasilien. S. Leopoldo: Roptermund, 1915, p. 253-89.
3 FIRMBACH, Teodor. Santa Clara: O combate federalista(Introd., trad. e notas de Hilda A. Hübner Flores). Porto Alegre: Nova Gimensão, 1995. 1ª edição em alemão, 1896.
4 HENNRICH, Teseria. "Wallachei"(Introd., trad. e notas de Hilda A. Hübner Flores). In Rev. Estudos Íbero Americanos, jun./1996. Porto Alegre: EDIPUCRS, p. 167-90. Original in Familienfreundkalender. Porto Alegre: Tip. do Centro, 1953, p.38-58.
5 Uma Colônia no Brasil. PUC Campinas, 1990 e S. Cruz do Sul, Unisc, 2002; publicado inicialmente em inglês, na Bélgica, 1862.
6 UMANN, Josef. Memórias de um imigrante boêmiio.(1ª edição 1938, em alemão, pela Riedl de Santa Cruz). 2ª ed. Porto Alegre: EST. 1981. Edição bi-lçingue. Introd., trad. e notas de Hilda A. Hübner Flores.
7 WEISS, João. Colonos na selva. Conto de um imigrante colono no sul do Brasil. Rio de Janeiro: ed. do autor, 1949.
Por Hílda Agnes Hübner Flores